Capítulo s/n - parte 9





O AMOR


Agora ela foi longe demais... E o pior, colocou no meio daquela sujeira um ser tão puro e inocente, que eu estava disposta a defender até com a minha vida... Nunca mais eu iria traí-los covardemente... Nunca mais...
Dessa vez, meu amigo, ela iria se arrepender de ter atirado uma pedra em mim, porque essa pedra não serviria nem para fazer um degrau... Era capaz de eu pisar em falso quando passasse sobre ela... Essa pedra iria voltar para ela, só que mil vezes maior e mais pesada...

Foi assim que aquele sentimento de angústia no meu peito foi se agigantando até virar ódio...

Uma corrente elétrica percorria todo o meu corpo, sinalizando todas as células, eu podia sentir até espasmos... A minha aura deve ter ido do azul ao vermelho mais intenso. Minha expressão facial, antes serena e tranqüila já denunciava aquela transformação química e magnética.
O rapaz da recepção percebeu, ou sentiu o calor e o peso das vibrações moleculares ao meu redor, que aumentavam como ondas num lago quando se atira uma pedrinha... Ele até tentou deter o avanço desse processo. Gentilmente pediu que eu voltasse três dias depois, no plantão do inspetor que recebeu o caso, para esclarecer melhor. Foram os três dias mais longos, que só serviram para nutrir e intensificar o ódio já instalado.

A notícia se espalhou pela vizinhança. Uma senhora me abordou, oferecendo solidariedade, depois de ouvir a história contada pela própria autora da queixa se vangloriando. Outra vizinha veio em busca de confirmação do boato que estava correndo, que o meu cachorro tinha mordido uma moradora. Eu que já parecia um dragão cuspindo fogo, retruquei com outra pergunta: “E essa moradora que foi mordida não morreu ainda não?”.
Os efeitos colaterais foram imediatos: inapetência, insônia, desconcentração, irritação e inquietação. Não conseguia fazer nada que necessitasse de concentração, as tarefas mais simples me irritavam, ao mesmo tempo não conseguia ficar parada e relaxar, minha mente começou a travar planos de vingança.
Pesquisei na internet tudo sobre Processo de Calúnia e Difamação; mas fiquei mais satisfeita com o de Danos Morais, que poderia ser feito em Juizado de Pequenas Causas, mais rápido e a pena mais severa, com uma indenização estipulada pelo Juiz, enquanto o outro era uma cesta básica, ou serviços comunitários. Não... Era pouco... Teria que ser algo mais severo... Teria que doer, para ela nunca mais fazer isso com ninguém... Eu estava obcecada... Com ódio... Meu corpo absorvia o veneno que corria em minhas veias...
Abandonei minhas tarefas diárias, meus entes queridos e meu lar para lançar-me ferozmente sobre o pescoço da vizinha e cortar-lhe a cabeça...

Seria eu quem subiria num palanque segurando a cabeça dela como troféu... Terminei essa frase com uma gargalhada digna de um filme de terror!

Os cachorrinhos me olharam de longe assustados... Não me reconheciam mais...

Meu Deus! Eu estava me transformando naquilo que sempre me causou horror! Eu estava ficando igual a ela...

Como os judeus, que agora perseguem os palestinos, eu estava me transformando de vítima em algoz... De oprimido transformando-se em opressor... É um círculo vicioso...

“A maior parte dos que não querem ser oprimidos não desgostaria de ser opressor.”
Napoleão

Assim, toda a história de um opressor é gerada a partir do momento em que foi oprimido, quando dali nasceu e cresceu o ódio, o desejo de vingança e a vontade de fazer justiça com as próprias mãos. Inconscientemente o oprimido permite que esse sentimento se instale em seu coração; a circulação do sangue percorre o caminho do coração, depois segue por todo o corpo, levando a cada célula a mensagem de ódio.

E o ódio tem o poder da destruição e da escuridão que cega, destruindo primeiramente o próprio ser que o gerou, subtraindo-lhe o equilíbrio. Uma pequena semente de mágoa ou decepção será suficiente para em pouco tempo agigantar-se, bastando pra isso alimentá-la e nutri-la com revolta, humilhação; e todos os outros sentimentos que a condição de oprimido pode despertar, principalmente no ego.

Nem todo oprimido se tornará um opressor, para isso é suficiente que possua a semente de amor, humildade e compaixão, e isso todas as pessoas possuem, assim como todas as pessoas também possuem a semente do ódio. Precisa apenas decidir qual delas vai alimentar e nutrir.

“Todos temos, dentro de nós, o lobo e o carneiro, resta saber qual deles você vai alimentar.”
Pensamento budista

E para reverter o processo do ódio quando ele já se agigantou será preciso uma força e uma vontade tão intensa quanto a que gerou o ódio.
Diante das dificuldades de Amar que nós temos, concluo ser mais fácil odiar, do que amar. Não porque o ódio seja mais forte, absolutamente, o Amor é a energia mais poderosa. O que acontece é que, ainda que todos nós tenhamos esse Amor dentro de nosso íntimo, o medo nos impede de doá-los indistintamente.
Esse medo surge a partir do momento em que esperamos sua retribuição. Depois de algumas decepções, começamos a escolher para quem dar esse Amor, mas mesmo assim, continuamos a nos decepcionar, porque ainda esperamos que ele seja retribuído em igual quantidade e qualidade com os quais oferecemos. Até que por fim, de tanto sofrer com a espera de uma retribuição, desistimos de amar...


“Somente aquele que foi o mais sensível pode tornar-se o mais frio e o mais duro, para se defender do mais pequeno golpe - e esta própria couraça lhe pesa muitas vezes.”
Goethe

A verdade é que quanto mais oferecemos mais receberemos Amor... É uma energia abundante e infinita, não devemos economizar... Devemos fazê-la circular entre todos, quanto mais doamos, mais recebemos. O que não devemos fazer é esperar essa retribuição... Senão vira uma moeda de troca. E não é assim que ela funciona... Talvez ela não venha da mesma pessoa que ofertamos, vem por outros meios, através de outras pessoas, da Natureza ou da própria Fonte que é a Energia Inteligente e Perfeita, o Universo, o Cosmos... Por isso deve ser Incondicional...
Você deve dar Amor sem nenhuma condição de troca, indistintamente, sem julgar se aquela pessoa merece ou não receber... Se por acaso ela não retribuir é porque ainda está presa ao medo e aos sentimentos inferiores do ego. Não está pronta para exercer o Amor que vem do Eu Superior, e talvez demore a perceber isso...

Quando ofertamos Amor Puro e Incondicional em abundância a todos indistintamente, sem nada esperar em troca, sem criar expectativas, não vamos sofrer decepções, nem ficar magoados com nada. Esse tipo de Amor surge do Eu Superior. O ego espera ser recompensado imediatamente, porque ele é egoísta... E se a pessoa não der de volta ficamos enfurecidos, magoados, rancorosos e tudo o mais.


“O tempo é muito lento para os que esperam
Muito rápido para os que têm medo
Muito longo para os que lamentam
Muito curto para os que festejam
Mas, para os que amam, o tempo é eterno.”
William Shakespeare

Além disso, ainda precisamos vencer os condicionamentos que recebemos na infância, quando somo estimulados a usar menos o Amor.
Os próprios pais orientam seus filhos a não levarem desaforo para casa. Meu pai, falou uma vez só: “Se chegar em casa chorando, vai apanhar mais ainda!”.
Ele não teve culpa de me passar o que o pai dele passou para ele, o problema aí ainda é o mesmo: Nós não refletimos sobre os sentimentos que movem nossas ações e estamos mais preocupados com o ego do que com o Eu Superior. E o ego não é capaz de alcançar a Sabedoria e Inteligência do Eu Superior. Pense comigo... Se todo mundo movesse a energia do Amor em tudo, principalmente com os adversários, o cenário seria extremamente diferente. Não haveria opressor, não haveria oprimido, nem adversários.

Então os pais deveriam aconselhar seus filhos a se deixarem ofender, sem revidar, sofrendo toda sorte de humilhações até virarem um saco de pancadas? Não, queridos... Todos os pais deveriam despertar o Eu Superior, e não o ego dos seus filhos. O Eu Superior possui todas as respostas Inteligentes e Perfeitas!

Aceitar uma ofensa com rancor é o mesmo que aceitá-la como uma verdade. Alguém te ofendeu? O que ele disse era verdade? Então, para que reagir com fúria! Isso apenas demonstra que as ofensas atingem o ego, mas não atingem o Eu Superior que conhece a Verdade.

“A qualquer instante podemos ser despojados do que supomos ter,
mas nunca o somos de nosso verdadeiro Ser.

Quanto mais vazio um recipiente,
maior o ruído que faz ao receber uma pancada.
O recipiente repleto fica mudo.
O sábio não responde a ofensas.

O ego pessoal é como a fuligem na manga
do candeeiro a esconder o esplendor da grande luz
que mora dentro e que, em verdade, todos somos.

A melhor proteção contra a ira é a inofendibilidade,
e isto só se consegue minimizando o ego.”

Trecho do livro “Cintilações” - prof. Hermógenes