Capítulo s/n - parte 8




O AMOR




Quando saí da clínica veterinária sem a Nina, apenas com a coleira vazia nas mãos, eu não sabia para onde ir, o que fazer... Não havia um lugar no mundo que eu pudesse estar naquele momento... Não havia nenhuma palavra que pudesse ser dita a fim de modificar aquele imenso vazio, profundo e negro que eu mergulhei... Por que eu sabia... Sabia que jamais poderia ter feito isso com a Nina... Justamente eu, que já tinha tantas provas da existência de Deus... Jamais poderia ter duvidado ou interferido em seus Planos... Quanto menos o ser humano interfere na Natureza, melhor ela pode demonstrar sua Perfeição e Beleza...


O imenso vazio só não foi ainda mais imenso e profundo porque ela me deixou os quatro filhotes; e em cada um deles tinha um pedacinho dela... Até nisso ela foi bondosa...


Agora você pode ter uma vaga idéia do que passa na minha mente, quando alguém me pergunta espantado por que eu tenho cinco cachorros. E que respondo, com muito pesar: “É... Tenho apenas cinco...”

E essa é a pergunta mais simples! Têm os que gostam de sofisticar mais, acrescentando inteligência; dinheiro; posição social; status; a aparência simples da minha casa e das minhas roupas... E quantos mais acrescentam, mais aumentam minhas náuseas e pesar... Coitados... Isso é tudo que eles possuem... Não me admira que tenham tanto pavor da morte... Acumulam durante uma vida inteira os seus tesouros em coisas, títulos e bens, para depois ter que abandonar tudo.



“Você possui apenas aquilo que não perderá com a morte; tudo o mais é ilusão.”

Autor desconhecido



Teve um senhor que me perguntou indignado, porque ao invés de cinco cachorros, não adotei cinco crianças.

Ah... Se eu pudesse... Adotaria não só os cachorros e as crianças, mas também os idosos e as árvores que são arrancadas para fazer cimentado... Se eu pudesse reuniria todos eles num mesmo local e a Natureza faria seu trabalho... Haveria uma troca mútua... As crianças dariam aos idosos a esperança, a energia e a inocência; os idosos ensinariam as crianças sabedoria e paciência; os cachorros ensinariam amor incondicional e alegria e as árvores ofereceriam o oxigênio, a sombra, o frescor... Esse é o meu sonho...

Já tive outros sonhos quando jovem... Mas não eram meus... Eram do meu pai, da sociedade, do meu chefe, dos vizinhos, do namorado... Esse não... É só meu... Poderia até acrescentar nele o sonho do Augusto. Esse meu amigo me confidenciou que faria um local para os desempregados e moradores de rua. Podia juntar com o meu sonho e ficaria completo. Não iria faltar trabalho... O amor é para somar, não subtrair...

Também têm, já que é para ser bem honesta, os intolerantes. Estes vão ainda mais além... Não se satisfazem em apenas criticar, querem modificar o meu modo de pensar e agir, custe o que custar. Travam pequenas batalhas diárias no intuito de alcançar, se eu permitir, uma verdadeira guerra. São a esses que dispenso maior dose de paciência para que não alcancem seu verdadeiro objetivo, que é o de me tornar como eles; e também porque estou numa posição em que posso ver os dois lados, e os intolerantes só vêem o lado deles, só eles detêm a verdade e todas as pessoas deveriam ser como eles, nem que seja a força bruta.

É incrível a disponibilidade de tempo e energia com que se atiram em tal empreitada. São capazes de abandonar suas tarefas diárias, seus filhos e seu lar para lançarem-se ferozmente sobre o pescoço da vítima e cortar-lhe a cabeça; para depois subirem num palanque, exibindo a cabeça da vítima como troféu e bradarem: “Isso é o que acontece com quem ousa ser diferente de mim!”

Foram eles que na Inquisição da Idade Média acusavam e condenavam à morte na fogueira os que não seguissem os dogmas da Igreja Católica; foram eles que escravizaram os negros; foram eles que chamaram os índios de selvagens e tomaram suas terras; foram eles que perseguiram e jogaram os judeus nos campos de concentração e exterminaram milhões em câmaras de gás.

Eles são capazes das maiores barbáries em nome de suas crenças, em nome de si mesmos, contra todo aquele que pensar e viver diferente deles. E eles ainda estão espalhados por aí, entre nós, disfarçados de bons cidadãos, que cumprem suas obrigações e pagam seus impostos.

A primeira vista podem aparentar os seres mais corretos e justos, que apenas lutam por seus direitos. Suas vidas são extremamente regradas e metódicas, não admitem um erro sequer, dentro daquilo que julgam ser o correto. Mas, basta encontrarem em seu caminho alguém que os desafie, apenas por pensar e ser diferente dele, então, um vulcão de cólera eclode de seu interior. Ele fará de tudo para aniquilar tal insurgência.

Era nisso que eu estava pensando, quando o síndico, interrompeu me interpelando: “Você me ouviu, Claudia? Eu disse que a sua vizinha foi na delegacia dar queixa do seu cachorro!”

Eu devo ter, lentamente, cerrado e aberto os olhos, enquanto enchia devagar os pulmões de ar e o soltava mais rapidamente, a fim de voltar àquela realidade que mais me parecia surreal.

Ele estava com uma expressão mais suave em seu rosto. Balancei a cabeça em sinal de que havia prestado atenção em todas as suas palavras e esclareci alguns pontos obscuros dizendo: “De fato, ontem pela manhã, quando voltava do passeio com meu cachorro, ao sair do elevador de serviço, a vizinha estava esperando o elevador social e deve ter se assustado quando meu cachorro latiu para ela, mas eu rapidamente o puxei para o outro corredor e esperei ela descer. Só não compreendo porque esse fato foi parar numa delegacia!”

Logo imaginei a tal vizinha em cima de um palanque, exibindo a minha cabeça e bradando...

O síndico carinhosamente segurou o meu queixo e disse: “Não acha melhor colocar uma focinheira nele, apenas para evitar esses aborrecimentos!”

Recebi aquele conselho como um sinal de um perigo iminente, que a minha visão ainda não alcançava... Então, concordei em usar a focinheira...

Concordei... Mas... Naquele momento permiti que um sentimento ruim entrasse em meu coração... Senti dores no peito, na região do plexo solar. Depois dores de cabeça... Corri para uma Instituição Mística Oriental, a fim de tomar uns passes magnéticos e aliviar aquela angústia.

Isso devia estar tão transparente que insistiram numa consulta com um dos Xelas. A única coisa que eu pedi foi uma orientação: “Como é que se faz para bloquear energias negativas dos outros?” Expliquei que estava com uma indesejável angústia no peito. Não queria guardar aquele sentimento. Não queria nem que ele tivesse entrado... Queria poder ter um bloqueador invisível anti-energias alheias, como uma redoma de vidro. Preciso descobrir como é que se faz isso, deve ter um jeito! A Xela passou um tratamento com vários nomes estranhos. Alguns eu conhecia, como cromoterapia, energia de chacras e outros.

Fiquei pensando por que a vizinha teria ido à delegacia prestar queixa... Pensei que ela havia aceitado os termos de cessar fogo...

..Há quatro anos eu fui à delegacia em busca de orientação para pôr um fim em suas intenções de declarar uma guerra contra mim.

Eu não estava nem um pouco a fim de uma guerra, ao contrário, estava me convalescendo de uma perda irreparável; tendo que extrair de mim o máximo de amor e atenção para os quatro filhotes, o Mike, meu sobrinho, minha mãe e minha irmã, que, aliás, teve uma melhora espantosa com a ajuda do Mike – Deus trabalha de forma misteriosa... -. Além do mais, uma guerra só é necessária em último caso e por um motivo nobre, quando, por exemplo, sua paz ou liberdade forem ameaçadas. Para outros fins, um acordo pode resolver...

O inspetor que me atendeu naquele dia tinha uma sensibilidade extraordinária. Eu também fui muito honesta, uma guerra sem honra é muita covardia! Eu comecei logo dizendo que tinha cinco cachorros no meu apartamento, sendo que quatro eram filhotes. Contei o que aconteceu com a Nina, e que em razão do ocorrido eu ia defender aqueles filhotes com unhas e dentes. Que os latidos deviam incomodar os vizinhos realmente, mas nada justificava a cólera da vizinha.

Expus meu desejo de ir para uma casa, mas que eu não poderia sair correndo feito uma criminosa. Depois eu relacionei todas as atitudes e comportamentos agressivos da vizinha, seus insultos e ofensas, suas acusações de coisas que nem tinha sido eu a autora... Coisas que já nem se relacionavam aos cachorros. Em todos os episódios fui muito paciente, sendo que o último teria sido a razão de ter procurado a delegacia: Ela ameaçou envenenar meus cachorros e levantou a mão para me esbofetear, imediatamente estiquei o pescoço, oferecendo-lhe a face, ao mesmo tempo em que a advertia de que ela perderia a razão, se é que ela tinha alguma, e iríamos parar na delegacia... Nesse momento ela ficou com a mão suspensa no ar, depois levou as duas mãos até a boca, apertando os próprios lábios... Não sei definir que sentimentos tomaram posse dela naquele momento.

Foi então que aquele homem, sob a forma de inspetor de uma delegacia, alcançou algo que fugia de minhas observações. Não eram os cachorros que incomodavam a minha vizinha, era eu, com o meu jeito de ser, de pensar e de viver... Eu era o verdadeiro motivo de tanta cólera, os cachorros serviam apenas de pretexto para me atingir. Talvez uma carta endereçada ao síndico, esclarecendo meus anseios em me mudar dali, e principalmente advertindo a tal vizinha de um processo judicial, caso ela insistisse em suas atitudes agressivas, colocaria um fim naquela história.


“A paz mundial, como a paz em uma comunidade, não necessita que cada um ame o seu vizinho – mas que vivam com mútua tolerância, submetendo suas disputas a um acordo justo e pacífico."

John Fitzgerald Kennedy


De fato ela cessou os ataques... Foi uma trégua de quatro anos... Eu até tinha esquecido que ela existia... Agora ela ressurgia das cinzas, tal qual Fênix... E usando as mesmas armas: a delegacia. Parece até que esperou pacientemente uma oportunidade. Ela não desistiu...

Mas, o que será que ela alegou na delegacia para registrar uma queixa? Que o cachorro latiu para ela? Isso será motivo para abrir um Registro de Ocorrência? Será que ela seria capaz de passar por cima das regras básicas e códigos de honra imprescindíveis em todas as “Guerras”? Que versão do ocorrido ela teria exposto em plena delegacia? Foram essas perguntas que me levaram a tirar essa história a limpo... Fui à delegacia para saber...

O rapaz da recepção me informou que de fato havia um Registro de Ocorrência, mas que eu teria que voltar no dia seguinte, pois o setor que poderia imprimir uma cópia já havia encerrado o expediente, já passava das quatro da tarde. Eu insisti para que ele me adiantasse alguma coisa, olhasse o que estava escrito no computador, onde havia localizado o registro. Educadamente ele falou em alto e bom som: “Está escrito aqui o seguinte: “Que uma moradora, no prédio onde ela reside, ameaça outros com seu cão.”

Pensei não ter ouvido direito, ou que estava com tantas desconfianças que interpretei mal, então, perguntei ao rapaz se ele entendeu o que estava escrito ali da mesma forma que eu havia entendido: “Que eu usava o cachorro, propositalmente, de forma ameaçadora contra os moradores!”. Ele apenas balançou a cabeça para cima e para baixo, confirmando minha interpretação.



“Em tempo de guerra, a primeira vítima é a verdade."

Boake Caster


“Sou um homem pacífico; Deus sabe quanto amo a paz. Porém, espero jamais ser tão covarde que confunda opressão com paz.”

Kossuth