capítulo s/n - parte 10

O AMOR



Felizmente a frase que meu pai utilizou deixou-me a vontade para interpretar que eu deveria resolver a situação por minha conta. Pude concluir que deveria agir de forma inteligente e com bom senso. Ainda assim é difícil resistir aos apelos do ego. Mas, nem todos têm a mesma sorte... Os caminhos podem ser mais truculentos se não tivermos quem nos oriente...

Eu tive a oportunidade, graças ao meu sobrinho, de acompanhar e observar de perto o universo infantil. Até ele completar treze anos a criançada se reunia na minha casa.

Muitas vezes levei cinco, seis e até sete crianças para a praia, andar de bicicleta, museu, restaurante, shopping (eu entrava na livraria, é claro, e para minha surpresa, eles gostavam), cinema, teatro, exposição de pinturas, planetário, cachoeira... Era uma loucura, mas achava importante apresentar para eles um universo diversificado, e também era muito gratificante estar no meio deles, eles têm uma energia... Era contagiante...
E quando eu soltava a minha criança interior... Esquecia que já tinha mais de trinta anos e brincava de pique-esconde, queimado, mímica e outras brincadeiras na calçada na nossa rua... Ria sozinha quando surpreendia os adultos me olhando brincar... Tinha vontade de dizer: “Vem brincar também... Vocês não sabem o que estão perdendo!”... Nesses momentos eu entendia perfeitamente como era difícil respeitar os horários de almoçar, jantar ou mesmo voltar para casa...

Eu observava como eram criativos nas brincadeiras, como reagiam com as diferenças, como resolviam seus conflitos, como lidavam com o universo de cada um. Era interessante observar que cada um deles já tinha uma bagagem de opiniões, mas em sua maioria herdada dos pais e adultos que os cercavam. Nas divergências de opiniões, por exemplo, tinham aqueles que queriam resolver tudo no braço. Depois que eu conhecia os pais deles, confirmava minhas suspeitas.

Teve um caso muito interessante... O menino era baixinho e magrinho, mas não se intimidava... Só que na hora que o bicho pegava ele chamava o primo dele, bem mais velho que os outros, mais forte e com o ego inflado. O menino baixinho e magrinho deitava e rolava ameaçando chamar o primo...
Um dia eu encontrei o tal primo dele, estava sozinho... Hum... Cheguei para ele e perguntei: O que ele iria fazer se algum dia ele não pudesse estar por perto para proteger o primo? Já que ele era baixinho e magrinho, não seria melhor ensiná-lo a usar a inteligência e o bom senso, assim ele poderia se defender sozinho! Não sei dizer se ele pensou sobre isso... Depois de um tempo, não tive mais notícias dos dois. Quis o destino que o baixinho e magrinho se mudasse para outra cidade, que ficava bem longe da casa do primo...

Teve outro caso... Esse serve para ilustrar os preconceitos... Foi de amargar... Meu sobrinho estudava em um colégio particular, de bom nível. Ele tinha uns sete ou oito anos de idade e ficava em horário integral no colégio. Eu tinha aulas de pintura pela manhã, e a tarde utilizava o atelier da faculdade para pintar os imensos quadros de seis metros quadrados. Então, achei interessante deixar o André, à tarde, depois das aulas, no colégio. Tinham mais dez crianças nessa situação. Eles tomavam banho, colocavam outra roupa, almoçavam, faziam o dever de casa e brincavam.

Eu ficava tranqüila... Até que um dia ele me disse que não queria mais ficar à tarde. Eu quis saber por que. Ele parecia feliz e de repente não queria mais... Algo aconteceu. Depois de muita insistência ele me revelou o fato. Na parte da tarde, ele preferia ficar de chinelos, mas a professora disse a ele, na frente de todos os outros, que ele parecia um mendigo usando chinelos ao invés dos tênis. E não foi só isso, para outro menino, ela disse que quem usa brinco é mulher!
Tentei me controlar para que ele não percebesse a minha revolta, mas é claro que deixei transparecer algo. E foi até bom para não confirmar ainda mais aquela triste sentença. A opinião dos adultos tem enorme peso para uma criança, ainda mais vindo de uma professora. Então, eu expliquei para o meu sobrinho que os adultos também cometem erros, assim como as crianças, talvez mais do que as crianças... Mas, que eu tinha certeza que no dia seguinte ela iria refletir sobre a grande bobagem que disse e iria se desculpar. Deveríamos dar uma chance a ela. Ele concordou.

No dia seguinte, enquanto ele assistia à aula de manhã, eu procurei a tal professora da tarde. Ela ainda não havia chegado, foi melhor assim... Eu queria voar no pescoço dela... Era o meu lobo sedento e faminto. Mas, isso além de não resolver o problema, ainda seria um péssimo exemplo para ele. Eu tinha que usar a inteligência e o bom senso... Alimentar o meu carneiro! A diretora do colégio ficou um tempo assistindo eu andar de um lado para o outro, inquieta. Quando ela não agüentou mais, veio perguntar.

Eu preferia resolver diretamente com a professora, mas ela insistiu, eu falei. Ela quis até demitir a professora... Então, eu expliquei que poderíamos conversar com ela, pedir que se desculpasse perante todos os alunos que estavam presentes, que ela pensou melhor, e essa atitude era preconceituosa, que não devemos julgar as pessoas pela aparência. Isso tiraria o peso do estrago feito na cabeça do meu sobrinho e das outras nove crianças que ouviram aquela sentença. Além do mais, colocar outra professora no lugar dela seria como trocar seis por meia dúzia; o que a diretora tinha que fazer é reunir os professores e conversar sobre a responsabilidade que cada um tem, quando emite um julgamento para as crianças. Eu não fiz pedagogia, mas isso é o básico, pelo amor de Deus, nessa idade deles é fundamental uma boa formação e colocação de opiniões. Vejam lá o que vocês estão colocando na cabeça do meu sobrinho! Não quero que lá pelos quarenta anos, ele tenha que fazer dez anos de análise para resolver uma coisa que vocês levaram segundos para dizer sem pensar!

Eu mesma fiz questão de conversar com a professora sobre isso. Fui delicada, gentil e amável... Ela não tinha culpa de ter recebido essa educação dos pais dela, e até da própria sociedade. Ela era tão vítima quanto seria meu sobrinho, se eu não interrompesse essa bola de neve...

Esperei ansiosa a saída daquela tarde. A expressão no rosto dele anunciava o conserto. Então, ele me contou: “Você tinha razão, ela pensou melhor no que disse e se desculpou na frente de todo mundo... Senti que ela foi sincera... Até chorou emocionada!

Foi então que eu disse ao meu sobrinho, que ela teve humildade! Todos cometem erros, mas nem todos têm a coragem de admitir e se desculpar. Nem sempre as coisas irão ter esse desfecho! Muitas pessoas nem sabem que estão erradas, vão falar bobagens, não vão refletir e nem se desculpar! Por isso, ele deveria desenvolver seu próprio juízo de valores.

Deixei passar um tempinho e decidi que, pelo menos por enquanto, ia pintar quadros menores em casa mesmo! Certas coisas podemos deixar para depois... Outras não...

Mas, sempre aparecerão bolas de neve... Algumas dão até para fazer bonecos de neve e brincar com eles... André já estava com treze anos quando surgiu a febre por um jogo de computador numa Lan House que abriu perto da minha casa. As crianças ficaram enlouquecidas para jogar... Os pais temerosos! Eu entrei para ver do que se tratava, fiquei assistindo... Tentei inutilmente remover da cabeça do André a idéia de participar daquele jogo... Até que um dia eu entrei na Lan, chamei o rapaz que trabalhava lá e pedi para ele me ensinar a jogar... A título de estudo e pesquisa, para saber se era violento ou não, quais os efeitos psicológicos no jogador... Eu tinha que saber!

Eu devia ter problemas psicomotores... Não foi fácil aprender... Depois que eu peguei o jeito, quebrei o tabu e achei divertido... Não tinha como confundir o jogo com a realidade... As crianças são inteligentes demais para saber as diferenças... Mas, o medo dos pais continuava... Quando passei a jogar também, eles não entenderam nada...

Depois a febre passou... Eles cresceram... Ficaram mais independentes... Mas, sempre vão precisar do nosso Amor... Temos que ser mais disponíveis... Não permitir que nossas vidas nos impeçam de perceber que deixamos algo por fazer ou por dizer... Que os sentimentos que movem nossas ações e palavras nos venham de uma Fonte de Sabedoria... Cuidar para não cultivar preconceitos e tabus... Ensinar que devemos ser tolerantes com as diferenças e com o modo de vida de cada um, para não criarmos futuros opressores... É muito triste ser o oprimido... Porém, mais triste ainda é ser o opressor...

O oprimido sofre e sabe por que está sofrendo, só não sabe que se superasse o ego encontraria a Sabedoria e seu sofrimento extinguiria. O opressor não sabe por que sofre, não encontra nenhuma razão aparente, o que lhe dificulta ainda mais superar o ego. Seu coração está pesado e cheio de ódio... Não consegue alcançar a felicidade... Além do que, o lobo que alimentou por tanto tempo, agora está maior, mais forte, e... Insaciável, o devora lentamente...


“A cada dia que vivo, mais me convenço de que o desperdício da vida está no amor que não damos, nas forças que não usamos, na prudência egoísta que nada arrisca, e que, esquivando-se do sofrimento, perdemos também a felicidade. A dor é inevitável. O sofrimento é opcional.”
Carlos Drummond de Andrade