Capítulo s/n - parte 7




O AMOR


Minha mãe ficou impressionada com a dedicação e energia que a Nina dispensava aos filhotes, se desdobrando para atender a todos. Não os deixavam sozinhos por muito tempo, dava saídas rápidas para beber água, comer e fazer necessidades.
Para essa última tarefa, tinha que levá-la à rua, não se demorava e quando voltava, tocava em cada um deles com o focinho, parecia que estava contando quantos tinham, certificando-se de que não faltava nenhum. Nessa parte, o Mike não teve chance nenhuma de compartilhar, ao contrário, ela o manteve afastado até que eles desmamassem.
Depois, quando os filhotes já corriam pela casa é que o Mike pôde se aproximar, mas ele só ficava observando as brincadeiras entre eles, que na verdade são ensinamentos que a mãe aplica aos filhotes, como ensinar que a liderança era dela. E ai de quem desafiasse, ela corria atrás e dava broncas até que ele se colocasse em postura submissa (deitado de cabeça baixa ou de barriga para cima), quando então ela os cobria de carinhos.

Eu queria ficar com todos eles. Foi muito difícil até imaginar o momento em que aconteceria uma separação, eu já havia me afeiçoado a todos eles. Se eu morasse numa casa com jardim, não teria dúvidas em ficar com todos.

Depois de me conformar em ter que achar um dono responsável e carinhoso para cada um dos filhotes, deparei-me com um grande obstáculo: O preconceito racial. Os vira-latas são extremamente desprezados. Quando achava alguém que aceitasse, eu fazia mil perguntas para saber se a pessoa merecia mesmo receber aquela dádiva, se iria cuidar deles com amor e responsabilidade.
Finalmente encontrei um senhor de alma pura e boa, pude sentir em sua aura, sabia que ele estaria à altura de compartilhar o amor dos animais; e ele morava numa casa com jardim, motivo pelo qual quis ficar com dois deles.

No dia da adoção, conversei com a Nina e ela parecia entender tudo que eu lhe dizia, se dirigiu aos dois filhotes, ela sabia até quais eram, e com gestos afetuosos se despediu deles, depois ficou olhando eu sair com eles nos braços. Ela não veio atrás tentando me impedir, como fez quando os levei para vacinar. Ela sabia. Não pude conter as lágrimas, chorei muito. Assim como agora, ainda as lágrimas escorrem pela minha face enquanto escrevo esta passagem e me faz recordar esse momento. Inevitavelmente, esse momento se junta a outro, que veio logo a seguir, ainda mais difícil, doloroso e imperdoável.

Recomeçamos a discussão sobre castrar a Nina ou o Mike, já que o veterinário era contra a pílula. Se eu pudesse voltar no tempo, teria procurado outro veterinário, ou melhor, teria me mudado para uma casa com jardim no interior do Rio de Janeiro, numa região serrana, onde mais perto da natureza eu pudesse dar maior vazão aos meus clamores internos. Algo em mim estremecia só de pensar em castrar qualquer um dos dois... Embora para o Mike o procedimento fosse mais simples, ele era frágil demais, tinha intolerância até com remédio para vermes.

Oh! Meu Deus, porque eu não ouvi a sua voz...

Por diversas vezes me dirigi à clínica para marcar o dia de castrar a Nina. Em todas às vezes senti um mal estar tão grande, que eu voltava para casa. Essa idéia me causava uma angústia no peito, um aperto no coração...

Encontrei a esposa do veterinário, que também era veterinária. Ela fez um discurso a favor da castração...

“Sempre que alguém diz ‘não devemos ser sentimentais’, entenda-se que está prestes a fazer algo cruel. E se acrescentar: ‘temos que ser realistas’, significa que vai ganhar dinheiro com isso.”
Brigid Brophy


Contrariando toda a sabedoria do meu coração, ignorando sua doce e terna voz, dei “ouvidos” a fria voz da razão... Nunca ela estará certa...

Marcamos a data.

O dia chegou...

Ainda recebi os sinais (sincronicidades) a tempo de mudar todo o destino.

Todas as noites, quando me deitava, a Nina vinha e se deitava ao meu lado por um tempo, se enroscava em meus braços até que eu a abraçasse, depois ela se espalhava para o lado, se esticava toda e dormia mais a vontade. Na noite que antecedeu a cirurgia, ela ficou encolhida ao meu lado a noite inteira.

No dia da cirurgia, tive que esperar mais de uma hora a chegada da esposa do veterinário que se atrasou. A Nina estava impaciente, andava em direção a porta, olhava para mim e puxava a guia, saí para a calçada e fiquei pensando em ir embora, depois diria que me senti mal... Mas, senti uma mão tocar em meus ombros... Era a esposa do veterinário. Entramos no consultório. Assinei um termo de responsabilidade, procedimento padrão. Fiquei lendo aquilo enquanto meu coração apertava... Assinei...

A anestesia era inalatória, mas antes lhe deram uma injeção... Alguns minutos depois ela me olhava desesperada... Fiquei nervosa e disse que havia alguma coisa errada... Os olhos dela ficaram vidrados... Meu coração se espremeu no meu peito... Aumentei o tom da voz: “Tem alguma coisa errada, vejam os olhos dela”! Nunca vou esquecer aquele olhar me implorando por socorro! Foi o último sinal que me foi concedido para mudar o destino... E eu não fui capaz de mudar... Podia ali, naquela hora, ter imediatamente levado a minha Nina embora dali... Teria mudado tudo... É isso que me atormenta...

A esposa do veterinário segurou em meus ombros, dizendo que isso era normal, que eu estava nervosa demais e que esse comportamento ia deixar a Nina nervosa. Que ao invés de ajudar, eu estava atrapalhando, e que era melhor eu sair da sala...

Eu fui capaz de acreditar mais na ciência do que no meu coração...

A ciência não foi capaz de me explicar porque a Nina morreu... Mas eu sou capaz de explicar porque que a ciência nunca deverá ficar acima de Deus...

A esposa do veterinário me disse: “Puxa vida, tem pessoas que vêm castrar seus cachorros, deixam aqui, sem nem se preocuparem com nada, depois voltam para pegá-los, às vezes temos até que ligar pedindo para buscá-los, e não acontece nada com eles. Será que não foram seus pensamentos que atraíram esse mal?”
E eu lhe respondi: “Não querida, é o contrário... Por eu me preocupar demais é que ela foi entregue aos meus cuidados. Era um ser que precisava de alguém que realmente tivesse esse cuidado. A verdade é que eu não deveria ser capaz de castrar! Mesmo sem saber por quê! Mesmo sem qualquer razão aparente! ‘O nosso coração tem razões que a própria Razão desconhece!’ Eu jamais deveria ter me deixado levar pela opinião alheia! Ninguém conhece a Verdade, apenas O Plano Inteligente e Perfeito... Somente Deus... Oh, Deus, Como fui fraca!”
Não foi a morte da Nina que me fez transbordar de tanta tristeza e mergulhar num buraco profundo e escuro, que a ciência denominou de depressão.
A morte quando é natural... Por doença ou velhice é apenas uma transformação, uma mudança de dimensão. É natural que um dia todos façam essa passagem... Sentiremos saudades dos seres amados que ficarem, ou daqueles que partirem... A dor da saudade não deve ser um pesar demasiado, mas uma doce e forte lembrança, e a certeza de um reencontro na eternidade.

O que pesa sobre mim é que poucas pessoas poderiam receber a Nina como uma dádiva; um ser precioso, cujos ensinamentos do amor puro e incondicional superam qualquer bem desejável. O que pesa sobre mim foi ter nas mãos um presente dos deuses e deixá-lo escorrer por entre os dedos. O que pesa sobre mim foi não ter tido a responsabilidade de protegê-la. O que pesa sobre mim foi não ter correspondido em igual dedicação, amor e proteção que ela me ofereceu. O que pesa sobre mim foi tê-la traído covardemente... Porque ela me protegeria até com sua própria vida...

Sabia que iria ser difícil escrever tudo isso. Levei algum tempo evitando entrar nessa parte. Quando não pude mais adiar, por dias abandonei o ato de escrever... Agora que o fiz, sei que foi ainda mais difícil do que pensava... E o fiz tentando ser o mais honesta possível, sem me poupar... Também fui curta e rápida, para que a dor não se estenda ainda mais...

Eu sei que quando eu me for para o outro lado, irei encontrá-la. E ela virá em minha direção abanando o corpo inteiro, como fazia quando estava muito feliz. Somente ela, que tem posse total do Amor Puro e Incondicional, será capaz de me perdoar... Antes mesmo que eu solicite esse perdão, ela já me perdoou... Eu não... Não sou capaz... Ainda não...


“Todo o bem que eu puder fazer, toda a ternura que eu puder demonstrar a qualquer ser vivo, que eu os faça agora, que não os adie ou esqueça, pois não passarei duas vezes pelo mesmo caminho".
James Green