O AMOR
Como surgiram os cinco cachorrinhos?
Não foi pegando os cachorros abandonados na rua não... Eu não era tão “gente boa” assim... Não porque não me comovia, mas simplesmente eu não os via...
Olha, tudo aconteceu como eu disse antes, eu estava no meu pequeno lago, meu mundinho restrito, mas muito confortável com essa situação, não precisava pensar muito, nem questionar nada. Era só seguir o caminho que a maioria das pessoas seguia: Estudar, “vencer” na vida para poder comprar um monte de bobagens e manter uma postura fria e distante para não perder a concentração. Havia, sim, não vou mentir, algo no meu íntimo clamando por mais conteúdo, mas logo tratava de sufocar esse clamor, afinal os sonhadores sofrem demais, estão sempre sem dinheiro, e ainda dividem tudo que possuem... Além do mais, ir contra o sistema é como ser atropelado por um trem!
Bem, eu assinei a minha sentença (de ser atropelada por um trem) no dia que a minha irmã chegou em casa com um filhotinho de cachorro, desnutrido e pulguento. Ela já havia levado pintinho, gatinho e outros “inhos”, mas eu nem olhava, mandava ela voltar com todos eles. Meu sobrinho era louco para ter um cachorrinho, mas eu sempre advertia do trabalho que dava. Tem que levar na rua duas ou três vezes por dia, alimentar, dar banho, vacinar, levar no veterinário, não pode deixar o coitado sozinho e tudo mais...
Como é que eu sabia de tudo isso?
Meu pai era louco por cachorros. Quando éramos crianças, cada dia ele levava um para casa. Minha mãe dava para outra pessoa no mesmo dia. Até que teve uma que durou um pouco mais. Ela não era filhote, já tinha uns cinco anos, provavelmente a dona dela morreu, porque ela era bem tratada e mimada. Kelly era o nome dela. Estranhamente a Kelly se sentiu em casa e me escolheu como dona. Geralmente, o cachorro com mais de um ano com o mesmo dono não suporta a separação e morre de tristeza.
Eu tinha uns dez anos de idade, mas assumi toda a responsabilidade com a Kelly, levava na rua, alimentava, dava banho e muito amor. Ela foi mestre na arte do Amor... Uma boa mestra... A Kelly só faltava falar... Eu entendia perfeitamente tudo que ela tentava me dizer com o olhar e os trejeitos... Eu não podia deixá-la sozinha por muito tempo... Ela não se alimentava e ficava triste. Então, eu não queria ficar longe dela... Só na hora do colégio que não tinha jeito, eu tinha que ir. Acho que foi por isso que um dia eu cheguei da escola e não a encontrei. Minha mãe não percebeu o universo que aquele sentimento poderia me trazer, achou estranho ou teve medo... Deu a Kelly para outra pessoa, sem jamais me dizer para quem. Não vou nem tentar descrever o que eu senti... Acho que foi por isso que nunca mais eu olhei para um cachorro com carinho, nunca mais sequer me aproximei de um... Até o dia que a minha irmã, passados quase trinta anos desse episódio, chegou em casa com um filhotinho desnutrido e pulguento.
O olhar que ele me lançou quando me aproximei... Não sei... Talvez todos os cachorros tenham esse olhar... É doce... Terno... Amoroso... Foi direto, como uma lança no meu peito, que se abriu, sangrando uma cicatriz de quase trinta anos.
Mas o Mike não me escolheu como dono... Escolheu a minha irmã. Bem que eu tentei estabelecer aquela relação que eu tinha com a Kelly, mas ele nem deu bola. O Amor dele estava dirigido para a minha irmã, depois para o meu sobrinho, quando sobrava um tempinho aí sim ele me dava atenção. Eles sempre têm muito para dar... Mas, não era igual a Kelly... Talvez, se eu não tivesse conhecido a Kelly, teria me dado por satisfeita.
Passados seis meses eu encontrei a Nina, aí sim... Foi igual como foi com a Kelly, na mesma hora, foi uma troca mútua e instantânea.
O veterinário do Mike veio logo com a história de castrar. Resisti bravamente, tentando encontrar outra solução. Pensei em me mudar com a Nina para outro apartamento, assim resolveria essa questão, mas encontrei dificuldades burocráticas... Pensei então em pílula anticoncepcional... O veterinário insistiu na castração. A pílula aumenta os riscos de câncer, enquanto que a castração previne o câncer. Eu insisti na pílula, senão todas as pessoas deveriam ser castradas para evitar o câncer. E quanto aos outros órgãos, como faremos para evitar o câncer, vamos tirar tudo também?
Eu seguia a “lógica” do coração. Castração nunca! Devia era ter mudado de veterinário, procurado outro mais naturalista; esse era muito competente, mas não tinha cachorro, e esse já era um sinal de que ele não poderia compreender meus anseios e aflições.
Por fim, demorei tanto para encontrar a solução que a Nina entrou no terceiro cio, e desta vez, já com um ano e meio, mais madura e mais esperta, os dois deram um jeito de escapar dos nossos olhares vigilantes e se casaram às escondidas. Entre apavorada e emocionada, decidi ficar emocionada...
Observei de longe os três dias de lua-de-mel dos dois apaixonados... Quanto carinho, cumplicidade e amor... Eles procuravam um quarto vazio, com pouca luz e sossegado, ficavam numa dança de sedução por um longo tempo e... Desculpe, minha observação estudiosa tinha um limite que não me permitia invadir a privacidade além desse ponto, embora eles nem percebessem a minha presença, eu abandonava o posto de observação e deixava a natureza seguir seu rumo em paz.
Quarenta e cinco dias depois, a barriguinha dela já denunciava a perfeição da natureza. Fizemos uma ultrassonografia e lá estavam seis pequenos frutos. A gestação dura em torno de 60 dias.
O parto foi uma das mais belas cenas que a natureza pôde me oferecer. Ela parecia uma mãe experiente, sabia exatamente o que fazer. Eu apenas rezava... Rezava e agradecia cada vez que um filhote anunciava sua chegada: envolto pela placenta que ela abria com os dentes e lambia primeiro por toda a face até que ele respirasse. Depois ela ingeria a placenta todinha, cortava o cordão umbilical com os dentes e lambia o umbigo até ficar perfeitinho, ainda lambia ele todo numa operação de limpeza; exibia orgulhosa, o filhote; e não sei nem como, ele já estava em seu peito mamando, quando então ela descansava. Fez isso por cinco vezes repetidas com intervalos de trinta minutos entre um filhote e outro. No último ela parecia cansada demais. Passou-se uma hora e nada, duas horas e eu fiquei preocupada. Liguei aflita para o veterinário que recomendou um pouco de mel (glicose) para repor as energias. Finalmente nasceu o último filhote, ela fez todo o ritual de sopro de vida naquele pequenino ser e só descansou depois de se certificar que estavam todos bem.
Como posso crer que tudo seja obra do acaso ou apenas instinto animal?
É muito mais que isso... Como não perceber ali a grandeza da energia do Amor?
Que espécie de ser humano eu seria se, após vivenciar tudo isso, não modificasse em nada meu modo de ver e entender o Universo e não repensasse o valor das coisas?
“Em se tratando de fidelidade, devoção, amor, muitos homens estão aquém do cão ou do cavalo. Que maravilhoso seria se pudessem ao menos antes do julgamento final, afirmar: ‘Eu tenho amado tão verdadeiramente ou sido tão decente quanto o meu cão.’ E ainda assim os chamam de ‘apenas animais!’”
Henry Ward Beecher
“Em meu pensamento, a vida de um cordeiro não é menos importante que a vida de um ser humano.”
Mahatma Gandhi